quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A educação como questão nacional

Texto 6 - A EDUCAÇÃO COMO QUESTÃO NACIONAL (*)

Como se depreende do próprio enunciado, percebe-se que a tarefa de fixar diretrizes e bases da educação nacional, isto é, estabelecer metas e parâmetros de organização da educação a serem seguidos pela totalidade de urna nação determinada, implica compreender como a educação se constituiu e se desenvolveu historicamente de modo a se colocar como um problema de caráter nacional.
Ora, a educação é inerente à sociedade humana, originando-se do mesmo processo que deu origem ao homem. Desde que o homem é homem ele vive em sociedade e se desenvolve pela mediação da educação. A humanidade se constituiu a partir do momento em que determinada espécie natural de seres vivos se destacou da natureza e, em lugar de sobreviver adaptando-se a ela necessitou, para continuar existindo, adaptar a natureza a si.
Em conseqüência do fenômeno acima apontado, o homem tem de se apropriar da natureza e transformá-la de acordo com suas necessidades, sem o que ele perece. Para continuar existindo o homem necessita produzir sua própria existência. E a forma de sua existência é determinada pelo modo como ele a produz ou, já que o homem só existe em sociedade, a forma da sociedade é determinada pelo modo como é produzida a existência humana em seu conjunto.
Ora, a produção da existência implica o desenvolvimento de formas e conteúdos cuja validade é estabelecida pela experiência, o que configura um verdadeiro processo de aprendizagem. Assim, enquanto os elementos não validados pela experiência são afastados, aqueles cuja eficácia a experiência corrobora necessitam ser preservados e transmitidos às novas gerações no interesse da continuidade da espécie.
Nas comunidades primitivas (modo de produção comunal) a educação coincide totalmente com o fenômeno acima descrito. Os homens se apropriam coletiva- mente dos meios de produção da existência e nesse processo se educam e educam as novas gerações. Nas sociedades antigas (modo de produção escravista) e medieval (modo de produção feudal) com a apropriação privada da terra, então o principal meio de produção, surge uma classe ociosa (que vive do trabalho alheio) e em conseqüência disso se desenvolve um tipo de educação diferenciada destinada aos grupos dominantes cuja função é preencher o tempo livre de “forma digna”, isto é, aquilo que na Idade Média foi traduzido pela expressão latina “otium cum dignitate”.
É no quadro acima esboçado que se situa a origem da palavra escola que em grego significa lazer, tempo livre, ócio e, por extensão, ocupação dos homens que dispõem de lazer; estudo. O mesmo ocorre com a palavra ginásio que em grego significa local dos exercícios físicos, local dos jogos que eram praticados por aqueles que dispunham de tempo livre, de ócio.
Essa educação diferenciada, centrada nos exercícios físicos, música, na arte da palavra e nas atividades intelectuais e desenvolvida de forma sistemática através de instituições específicas era, portanto, reservada à minoria, à elite. A maioria, isto é, aqueles que, através do trabalho, garantiam a produção da existência de si mesmos assim como dos seus senhores, continuava a ser educada de maneira assistemática através da experiência de vida cujo centro era o trabalho. Nesse contexto a forma escolar da educação era uma forma secundária que se contrapunha como não-trabalho à forma de educação generalizada, determinada pelo trabalho.
Na sociedade moderna (modo de produção capitalista) a classe dominante (burguesia) detém a propriedade privada dos meios de produção (condições e instrumentos de trabalho convertidos em capital) obtida pela expropriação dos produtores.

Entretanto, diferentemente dos senhores feudais (nobreza), a burguesia não pode ser considerada uma classe ociosa. Ao contrário, é uma classe empreendedora compelida a revolucionar constantemente as relações de produção, portanto, toda a sociedade. Oriunda das atividades mercantis que permitiram um primeiro nível de acumulação de capital, a burguesia tende a converter todos os produtos do trabalho em valor-de-troca cuja mais-valia é incorporada ao capital que se amplia insaciavelmente. Nesse processo, o campo é subordinado à cidade e a agricultura à indústria que realiza a conversão da ciência, potência espiritual, em potência material.
O predomínio da cidade e da indústria sobre o campo e a agricultura tende a se generalizar e a esse processo corresponde a exigência da generalização da escola. Assim, não é por acaso que a constituição da sociedade burguesa trouxe consigo a bandeira da escolarização universal e obrigatória. Com efeito, a vida urbana, cuja base é a indústria, rege-se por normas que ultrapassam o direito natural, sendo codificadas no chamado ‘direito positivo” que, dado o seu caráter convencional, formalizado, sistemático, se expressa em termos escritos. Daí a incorporação, na vida da cidade, da expressão escrita de tal modo que não se pode participar plenamente dela sem o domínio dessa forma de linguagem.
Em razão do exposto, para ser cidadão, isto é, para participar ativamente da vida da cidade, do mesmo modo que para ser trabalhador produtivo, é necessário o ingresso na cultura letrada. E sendo essa um processo formalizado, sistemático, só pode ser atingida através de um processo educativo também sistemático. A escola é a instituição que propicia de forma sistemática o acesso à cultura letrada reclamado pelos membros da sociedade moderna.
Nesse contexto, a forma principal e dominante de educação passa a ser a educação escolarizada. Diante dela a educação difusa e assistemática, embora não deixando de existir, perde relevância e passa a ser aferida pela determinação da forma escolarizada. A educação escolar representa, pois, em relação à educação extra- escolar, a forma mais desenvolvida, mais avançada. E como é a partir do mais desenvolvido que se pode compreender o menos desenvolvido e não o contrário, é a partir da escola que é possível compreender a educação em geral e não o contrário. Parafraseando Marx, se não é possível compreender a renda imobiliária sem o capital mas é possível compreender o capital sem a renda imobiliária, dir-se-ia que, na sociedade moderna, não é possível compreender a educação sem a escola, mas é possível compreender a escola sem a educação.
É, assim, no âmbito da sociedade moderna que a educação se converte, de forma generalizada, numa questão de interesse público a ser, portanto, implementada pelos órgãos públicos, isto é, pelo Estado o qual é instado a provê-la através da abertura e manutenção de escolas.
LUZURIAGA (1959), em sua HLstór, da Educação Pública, situa as origens da instrução pública nos séculos XVIe XVII quando teria havido aquilo que ele chama de “educação pública religiosa”. Com efeito, nessa época de modo especial os rei.)resentantes da Reforma Protestante conclamavam os governantes a disseminarem a instrução elementar através da abertura de escolas. Já o século XVIII é caracterizado pelo surgimento da “educação pública estatal” quando, sob o influxo do Iluminismo, se trava um combate contra as idéias religiosas, fazendo prevalecer uma visão laica de mundo. Esse século culmina com a Revolução Francesa quando se difunde a bandeira da escola pública universal, gratuita, obrigatória e leiga firmando-se com clareza o dever do Estado em matéria de educação.
Segundo o mesmo autor, o século XIX será o século da educação pública nacional”. Efetivamente, é nesse século que se constituem (ou se consolidam) os Fstados Nacionais que vão se colocar o problema da organização dos respectivos sistemas nacionais de educação, o que começa a se efetivar no final do mencionado século. Finalmente, Luzuriaga considera que o século XX corresponde ao advento da “educação pública democrática”. É, com efeíto, neste século que se busca democratizar a educação, seja quantitativamente através da universalização e prolongamento da escola fundamental, seja qualitativamente através da difusão dos movimentos de renovação pedagógica.
O Brasil entra para a História da chamada “Civilização Ocidental” exatamente ao abrir-se o século XVI. Sua história coincide, pois, com o período caracterizado pelo surgimento e desenvolvimento da educação pública.
As relações entre Estado e Educação no Brasil remontam às origens de nossa colonização. Quando os primeiros jesuítas aqui chegaram em 1 549, chefiados pelo Padre Manoel da Nóbrega, eles cumpriam mandato do Rei de Portugal, D. João III, que formulara, nos Regimentos”, aquilo que poderia ser considerado a nosa primeira política educacional, A partir daí foi elaborado o plano de ensino de Nóbrega dirigido tanto aos filhos dos indígenas como aos filhos dos colonos portugueses. Tal plano foi logo suplantado pelo plano geral dos jesuítas, a “Ratio Studiorum”, com o que se privilegiou a formação das elites centrada nas chamadas “humanidades’ ensinadas nos colégios e seminários que foram sendo criados nos principais povoados. O ensino jesuíta então implantado, já que contava com incentivo e subsídio da coroa portuguesa, constitui a nossa versão da “educação pública religiosa”. Os jesuítas dominaram a educação brasileira até a metade do século XVIII quando, em 1759, foram expulsos pelo marquês de Pombal, primeiro-ministro do Rei de Portugal, D. José I.
As “reformas pombalinas da instrução pública” se inserem no quadro das reformas modernizadoras levadas a efeito por Pombal visando colocar Portugal ‘à altura do século”, isto é, o século XVIII, caracterizado pelo Iluminismo.
Através do Alvará de 28 de junho de 1759, determinou-se o fechamento dos colégios jesuítas introduzindo-se, posteriormente, as “aulas régias” a serem mantidas pela Coroa para o que foi instituído em 1772 o “subsídio literário”.
As reformas pombalinas se contrapõem ao predomínio das idéias religiosas e, com base nas idéias laicas inspiradas no Iluminismo, instituem o privilégio do Estado em matéria de instrução surgindo, assim, a nossa versão da “educação pública estatal”.
Entretanto, essa iniciativa não passou de um esboço que não chegou propriamente a se efetivar, por diversas razões, entre as quais podemos mencionar: a escassez de mestres em condições de imprimir a nova orientação às aulas régias, uma vez que sua formação estava marcada pela ação pedagógica dos próprios jesuítas; a insuficiência de recursos dado que a Colônia não contava com uma estrutura arrecadadora capaz de garantir a obtenção do “subsídio literário” para financiar as aulas régias”; o retrocesso conhecido como “viradeira de Dona Maria I" que sobreveio a Portugal após a morte de D. José I em 1777; e, principalmente, o isolamento cultural da Colônia motivado pelo temor de que, através do ensino, se difundissem na Colônia idéias emancipacionistas. Com efeito, a circulação das idéias iluministas em meados do século XVIII vinha propiciando a influência das idéias liberais européias em países americanos, alimentando não só desejos mas movimentos reais visando à autonomia política desses países.
Com a independência política proclamada em 1822 o Brasil se constitui como um Estado Nacional que adota o regime monárquico sob o nome de “Império do Brasil”.
A oportunidade de configurar institucionalmente o novo país, criada com a instalação da Assembléia Constituinte de 1823 é abortada pelo golpe de Estado de 12 de novembro do mesmo ano através do qual D. Pedro I fechou a Constituinte outorgando, em 1824, a Constituição do Império. Além disso, ainda em 1 823, a lei de 20 de outubro declarava livre a instrução popular, “eliminando o privilégio do Estado, estabelecido desde Pombal, e abrindo caminho à iniciativa privada” (PAIVA, 1973: p.6l).
Reaberto o Parlamento em 1826, em 15 de outubro de 1827 foi aprovada uma lei que estabelecia: “em todas as cidades, vilas e lugares populosos haverá escolas de primeiras letras que forem necessárias” (Cf. XAVIER, 1980: pp.4l -54). Pode-se dizer, entretanto, que essa lei permaneceu letra morta.E o Ato Adicional à Constituição do Império, promulgado em 1834, colocou o ensino primário sob a jurisdição das Províncias, desobrigando o Estado Nacional de cuidar desse nível de ensino, Considerando que as províncias não estavam equipadas nem financeira e nem tecnicamente para promover a difusão do ensino, o resultado foi que atravessamos o século XIX sem que a educação pública fosse incrementada.
A proclamação da República em 1889 significou efetivamente, ao menos no plano institucional, uma vitória das idéias laicas. Decretou-se a separação entre Igreja e Estado e a abolição do ensino religioso nas escolas.
Entretanto, a educação popular não se tornou, ainda, um problema do Estado Nacional. Dado que no Império, que era um regime político centralizado, a instrução popular estava descentralizada, considerou-se que, a fortiori na República Federativa, um regime polftico descentralizado, a educação deveria permanecer descentralizada. Com esse argumento se postergou mais uma vez a organização nacional da instrução popular mantendo-se o ensino primário sob a responsabilidade das antigas províncias, agora transformadas em Estados federados.
Com o desenvolvimento da sociedade brasileira, que acelera o processo de industrialização e urbanização, as pressões sociais em torno da questão da instrução pública se intensificam, difundindo-se o entendimento do analfabetismo como uma doença, uma vergonha nacional, que devia ser erradicada. Nesse contexto formulam-se, ao longo da década de 20 deste século, reformas do ensino em diversos Estados da Federação tendo em vista a expansão da oferta pública, ao mesmo tempo que a influência das idéias renovadas provoca o surgimento de movimentos organizados que levantam também questões relativas à qualidade da educação. Mas o Poder Nacional permanece, ainda, à margem dessas discussões.
Efetivamente foi somente após a Revolução de 1930 que começamos a enfrentar os problemas próprios de uma sociedade burguesa moderna, entre eles, o da instrução pública popular. Assim é que, ainda em 1930 logo após a vitória da Revolução, é criado o Ministério da Educação e Saúde. A educação começava a ser reconhecida, inclusive no plano institucional, como uma questão nacional.
Na seqüência tivemos uma série de medidas relativas à educação, de alcance nacional: em 1931 as reformas do Ministro Francisco Campos; em 1932, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, dirigido ao povo e ao governo, que apontava na direção da construção de um sistema nacional de educação; a Constituição de 1934 que colocava a exigência de fixação das diretrizes da educação nacional e elaboração de um plano nacional de educação; as leis orgânicas do ensino, um conjunto de reformas promulgadas entre 1942 e 1946 por Gustavo Capanema, ministro da Educação do Estado Novo. Mas foi somente em 1946 que viemos a ter uma lei nacional referente ao ensino primário.
A Constituição Federal de 1946 ao definir a educação como direito de todos e o ensino primário como obrigatório para todos e gratuito nas escolas públicas e ao determinar à União a tarefa de fixar as diretrizes e bases da educação nacional, abria a possibilidade da organização e instalação de um sistema nacional de educação como instrumento de democratização da educação pela via da universalização da escola básica. A elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, iniciada em 1947 era o caminho para realizar a possibilidade aberta pela Constituição de 1946.
Entretanto, passados 13 anos, a lei aprovada em 20 de dezembro de 1961 não correspondeu àquela expectativa. Assim, à parte as diversas limitações da lei, basta lembrar que o próprio texto incluía expressamente, entre os motivos de isenção da responsabilidade quanto ao cumprimento da obrigatoriedade escolar, o comprovado estado de pobreza do pai ou responsável” e a “insuficiência de escolas”. Reconhecia-se, assim, uma realidade limitadora da democratização do acesso ao ensino fundamental, sem dispor os mecanismos para superar essa limitação.
A limitação que acaba de ser apontada não é revertida com a política educacional de que é expressão a Lei 5.692 de 11 de agosto de 1971 que “fixa as diretrizes e bases para o ensino de primeiro e segundo graus”. Ao justificar a profissionalização universal e compulsória do ensino de segundo grau, o Relatório do Grupo de Traba lho que elaborou o texto dessa lei critica o dualismo anterior do ensino médio aludindo ao slogan “ensino secundário para os nossos filhos e ensino profissional para os filhos dos outros”. Com esse slogan o Relatório estava sugerindo que as elites reservavam para si o ensino preparatório para ingresso no nível superior, relegando a população ao ensino profissional destinado ao exercício das funções subalternas. Para corrigir essa distorção converteu-se a formação profissional em regra geral do ensino de segundo grau devendo, pois, ser seguida por todos indistintamente.
No entanto, a referida lei introduziu a distinção entre terminalidade ideal ou legal, que corresponde à escolaridade completa de primeiro e segundo graus com a duração de onze anos, e terminalidade real, preconizando-se a antecipação da formação profissional de modo a garantir que todos, mesmo aqueles que não cheguem ao segundo grau ou não completem o primeiro grau, saiam da escola com algum preparo profissional para ingressar no mercado de trabalho. Em outros termos, admitiu-se previamente que nas regiões menos desenvolvidas, nas escolas mais carentes, portanto, para a população de um modo geral, a terminalidade real resultaria abaixo da legal, isto é, chegaria até os dez anos de escolaridade ou oito, sete, seis ou mesmo quatro anos correspondentes ao antigo curso primário; ainda assim, também nesses casos o aluno deveria receber algum preparo profissional para daí passar diretamente ao mercado de trabalho. Com isso a diferenciação e o tratamento desigual foram mantidos no próprio texto da lei, apenas convertendo o slogan anterior neste outro: “terminalidade legal para os nossos filhos e terminalidade real para os filhos dos outros”.
Em conseqüência, o Estado brasileiro não se revelou, ainda, capaz de democratizar o ensino, estando distante da organização de uma educação pública democrática de âmbito nacional.
À vista da situação descrita, estamos prestes a transpor o limiar do século XXI sem termos conseguido realizar aquilo que, segundo Luzuriaga, a sociedade moderna se pôs como tarefa dos séculos XIX e XX: a educação pública nacional e democrática.
É nesse contexto e a partir dessas coordenadas que cabe analisar a trajetória, limites e perspectivas da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional aprovada pelo Parlamento brasileiro e sancionada, sem vetos, pelo Presidente da República no dia 20 de dezembro de 1996.
Antes, porém, de nos dedicarmos diretamente a essa tarefa, convém examinar mais de perto os antecedentes históricos específicos dessa nova lei geral da educação brasileira. Dessa forma será mais fácil, assim entendemos, configurar mais claramente o âmbito próprio em que ela se situa.

(*)(SAVIANI, Dermeval. A nova lei da educação: trajetórias, limites e perspectivas,6ª ed., Campinas: Autores Associados, 2000).

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